quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Homenagem "gramminha"

CONSIDERAÇÕES

Nos idos de 70, jovens enverdecidos pela Grama da praça da “liberdade” cortaram as amarras e hastearam a bandeira de cabelos longos contra os ventos, “sem lenços e sem documentos”. Não por ufanismo, mas pelo desejo de disseminação das descobertas e das peripécias de um mundo fantástico chamado cultura, com todo o seu acervo de simbologias e miscigenação, sem, contudo se tornarem estanques. Cavaleiros da ordem da libertação. “Eles não queriam saber de nada que não fosse libertação.” Libertação de tudo: de pensamento, regras, normas, formas, inventando novas auroras nos círculos pintados com sangue e coragem, reinventado o mundo da comunicação, senhores do verbo encantado, caçadores de prosódias, envergadores de palavras. Porque era preciso escrever como se estivesse “rasgando os corações” e “desfibrar, fibra por fibra os corações”: a ordem do dia era escrever, pois toda palavra, mesmo que calada, era uma cilada. Entretanto, mesmo subvertendo e transgredindo as imposições do sistema vigente, não traçaram as veredas das incertezas, sendo que tinham plena consciência do que estavam fazendo e utilizavam o espaço gráfico do papel como fábrica de ideias, o mimeógrafo tornou-se um verdadeiro congresso das artes, não bastava só deglutir, mas também regurgitar o jornal, quente e Multifacetadamente impresso em um novo formato.

O comentário acima trata de nomes que apregoaram novas páginas na cultura e na história do Piauí: os editores do jornal alternativo “Gramma”, que circulou por nosso solo em duas edições, 71 e 72. A segunda, homenageando Torquato Neto, grande contribuinte e amigo dos editores do jornal.

O Ágora homenageou, nesta edição,desta vez no espaço cultural Boi Bumbá, a magnitude poético de três nomes emblemáticos do movimento Gramma: o poeta e publicitário Durvalino Couto Filho, o poeta e psiquiatra Edmar Oliveira e o poeta e jornalista Paulo José Cunha, acrescido da poesia de Torquato Neto, pela história no processo de construção do grupo. O Gramma, não somente para Piauí, mas também para o Brasil, além de representar a renovação e a introdução de um novo modo de escrever, representava ainda a resistência ao universo político-cultural da época, já que, em contrapelo assolava o nosso país os anos de chumbo do regime ditatorial, uma ferrugem na engrenagem da história nacional. “Tempo de absoluta negação”, no qual a vida tragava-se na fumaça das horas medrosas, nas explosões que tangiam os homens pras lonjuras e quebravam o silêncio de quase um minuto dos dias vermelhos, onde os homens evaporavam com gosto de gás. Porém, mesmo com tudo isso, era preciso escapar com vida, e a palavra escrita era a única saída.

E foi através do verbo estilhaçado que os “Grammistas” se reinventaram e fundaram um estado interessante, um país interessante.




DURVALINO FILHO


O REI ESTAVA ENSIMESMADO



O rei estava ensimesmado,
De sua boca nada se ouvia
- nenhuma ordem para hoje,
nenhum enforcamento.
Não foi cobrado o dízimo da noite.
Um escândalo arrebentou na economia
e não foi liberado o pensamento
porque o rei havia-se calado
e o país inteiro adormecia.

O enclausurado urrou por entre as grades.
Mil acidentes com os bóias-frias.
O bispo fiou celerado, possesso
e o diabo rezou a ordem do dia.
Na iniciativa privada
forjaram-se falências desastrosas
com a nudez do rei que só ouvia.

Mataram cães de estimação
em mansões de beira-rio.
Comunidades se desintegraram,
crianças tornaram-se desafio
e a nudez das mulheres
virou prato do dia.
Adeus, véus de Alexandria!

Não houve festas nas periferias
e as mentiras aumentaram em abril.
Até que o rei declarou
num assomo de agonia:
“Nada mudou no Brasil.”


ANÓIA
(A leviandade)

Dito escravo da família,
ao trabalho devotado
- um barnabé pontual,
lambe-botas renitente
inda metido a janota
- o promissor candidato
a deputado federal
contava horas longas
separando-o de Brasília,
onde se instalaria
num “funcional” arretado
com todas as regalias.
Agora fazia carreira
no engole sapos e verbas
na Grande Secretaria.
Sua mãe não esperava
que um astuto inimigo
aplicasse àquele filho
o golpe definitivo:
apesar das preferências
que aludia ter feito
pelas donzelas fogosas
toddy-criadas ao leito,
seria espalhado na city
para fim de seu eldorado:
- “Senhoritas, infelizmente
o secretário é viado!



EDMAR OLIVEIRA


CANTO EM TERESINÊS


das carnaúbas da minha terra

quase em disco de cera escutei

minha bandeira verdamarela

carnaubei palmeira bela

no porenquanto dos meus momentos

morrurubú de tantos ventos

gregoriei de água e vela

e aprofundei minh'alma nela

cidade em rio mergulharei

crispim do mar que nunca erra...


CEGUEIRA


Como me apercebo da tua presença
Que se coloca maior que as outras
São sombras e a tua imagem

Mesmo que já não me vejas
Te guardo assim
Na minha retina
Sobreposta às outras imagens
São teus, meus olhos...


PAULO JOSÉ CUNHA




Este primeiro poema é pré-Gramma. Foi escrito em 68 (eu tinha 17 anos), e até hoje é inédito:


NA CURVA DA ESQUINA
(1968)

Na curva da esquina a vida é calma
E é urgentemente necessário gritar bem alto
A nossa maturidade.
Na curva da esquina a vida é calma
Mas é urgentemente necessário ter coragem de quebrar a imagem do santo
Na curva da esquina a vida é calma
Mas é urgentemente necessário não ter medo da orfandade.
Na curva da esquina a vida é calma.
Mas é urgentemente necessário fazer a curva da esquina
E amar como homem
Não como discípulo.
É necessário dobrar a esquina da revolta e
Ser matéria, simplesmente matéria, nada mais do que matéria.
É urgentemente necessário amar a mulher nua.
Não a imagem de Deus.
É urgentemente necessário dobrar a curva da esquina
Porque só na curva da esquina a vida é calma.



CHEGUE


Não diga nada, não bata na porta.
Não traga nada nas mãos:

Chegue.

E espalhe os olhos sobre os móveis,
sobre os pratos, sobre a cama.

Chegue.

Como quem foi comprar cigarros,
receber a correspondência,
ou atender à campainha.

Chegue.

Como essas flores
que chegam de repente,
e quando menos se espera
é primavera.

Chegue.

Assim, bem devagar,
sem pressa alguma,
como se não precisasse chegar.

Chegue.

Apenas chegue,
e diga alguma coisa em meu ouvido,
como se nunca tivesse saído.



TORQUATO NETO




CHAPADA DO CORISCO

Se eu disser que quero ir até
Do outro lado do mar
Não acredite
Eu vou querer
Ficar

Se eu disser que quero ir até
Do outro lado de lá
Não me pergunte
Não vou querer
Falar

As sete Cidades mortas
Sete pedras, sete portas
No caminho da chapada do corisco
De onde eu vim

Meu lugar é minha vida
Esta noite é tão comprida
Tão antiga, ai de mim

Oh, se eu disser


TOADA


Nos campos da minha terra
Passei o tempo em remanso
Pelas ramas da alegria
E eu te via clareando, e eu te via clareando
A manhã que já nascia
Rodeada pelo cheiro
Do alecrim que te vestia

Ê minha terra, ê minha vida
Que é feito dessa morena
Que partiu e sem despedida

Morena faz tanto tempo
Que eu não te vejo passar
Rosa aberta pelo vento
Flor bonita margarida
Ah morena, aquele tempo
Não precisava acabar

Ô minha terra, ô minha flor
Que é feito da minha vida
Que é feito do nosso amor.

Por isso eu canto agora
Essa toada mais triste
Pra te dizer que demora
Que mora dentro do peito
Uma saudade que insiste
Em te ver clareando
Em te ver clareando
As manhãs de onde fugiste.












terça-feira, 24 de agosto de 2010

Repente

Justificando a proposta de valorizar os artistas locais, o sarau Ágora do mês de Julho, esfolheou os cancioneiros populares da Literatura de Cordel e prestou uma bucólica homenagem aos repentistas oriundos de Várzea Grande: Edmilson Ferreira e Zé Ferreira e ao repentista radicado em Amarante: Eduardo Persa.
Considerações biográficas e amostra poética:

Edmilson Ferreira dos Santos, 37 anos, iniciou na arte da cantoria aos 12 anos de idade, e profissionalizou-se como repentista na cidade de Oeiras- PI, no ano de 1988, ao lado do irmão Zé Ferreira, com quem formou sua primeira dupla e com quem publicou, em 1989, já residindo em Teresina, o livro “A Viagem de Um Matuto”. Desfeita a dupla em 1991, Edmilson Ferreira partiu em busca de novas experiências. Trabalhou em vários programas radiofônicos, nas rádios: Rural de Mossoró, Cuturité, em Campina Grande, Cultura, em São José do Egito. Atuou no filme Muiraquitan, do cineasta Sérgio Bernardes, em Pombal – PB, em Maio de 2002, e no projeto Alvorada do governo do estado do Pernambuco, em convênio com a UNESCO, em 2003.
A convite da associação CORDAE/La Talvera, participou de uma temporada de cantoria na França, em outubro de 2001, atuando em cidades como: Marseille, Toulouse, Albi, Bordeaux e Paris. Possui trabalhos publicados nos seguintes livros: “A fortuna de Repente, De Repente Cantoria, Versos Itinerantes, Anais do Grande Encontro de Poetas e Repentistas, Uma Noite Estrelada de Poesia em Pombal, Sonetos de Cantadores, Brazilian Music: Northeastern Traditions and the Heartbeat of a Modern Nation e Thèse pour lê DOCTORAT DE L’UNIVERSITÉ BORDEAUX 2”.
É formado em Letras (português, inglês e francês), pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e reside atualmente na cidade de Recife-PE, onde atua em parceria com Antônio Lisboa.

FAZENDEIRO VIRTUAL

Como é ótimo brincar de fazendeiro
ter cavalos, galinhas e ovelhas
peixes, pássaros, jardins, flores e abelhas
onde o próprio cenário exala cheiro

Quem vier visitar faz paradeiro
num cenário poético sem parelhas
harmonia do piso até as telhas
onde as coisas existem sem dinheiro

Essa simples fazenda me parece
o refúgio da vida sem estresse
e o abrigo da biodiversidade

Quero nela entender cada animal
começar fazendeiro virtual
e terminar fazendeiro de verdade

José Ferreira dos Santos, “Zé Ferreira”, canta profissionalmente desde os 16 anos de idade. Em dupla com o irmão Edmilson Ferreira, foi campeão estadual num dos maiores festivais piauienses de repentistas, no ano de 1989, e em 2002 participou do XVII torneio de repentistas de Olinda- PE, com os maiores cantadores do nordeste, obtendo mais uma vez o primeiro lugar. Participou do projeto Alvorada do governo do estado de Pernambuco, em convênio com a UNESCO. Trabalhou em várias emissoras de rádio, como: Rádio Rural de Mossoró, Rádio Sertões, de Mombaça, no Ceará, dentre outras. Percorreu o país de ponta a ponta, divulgando a cantoria de viola.
Mantém hoje, um programa na Rádio Vale do Canindé, em Oeiras- PI, onde reside.

SONETO DE MASTURBAÇÃO

Entre quatro paredes do meu teto
sufocando o desejo reprimido
sinto-me, pela falta de afeto
um escravo do sexo proibido

Faço a imagem do corpo que despido
deixaria o meu ego mais quieto
ligo logo o chuveiro e vou direto
ao ponto sensível da libido

Quando a mão oscilante intensifica
a saliva amornada lubrifica
o invólucro do órgão genital

E após cada sessão de fantasia
reconheço que fiz com quem queria
a melhor relação sexual

Eduardo de Magalhães de Sousa Persa nasceu no Rio de Janeiro, a 17 de Agosto de 1956. Ainda aos 14 anos de idade, inconformado com a vida burguesa, abandonou a família, vindo a instalar-se nos arredores de Amarante, onde vive até hoje. Apaixonou-se pela Literatura de Cordel. Sua educação literária é fruto unicamente de suas leituras e de suas reflexões. Rebelde, Eduardo tornou-se severo com as mudanças de vida, é apenas lavrador, lavrador da terra e das palavras.

O AUTODIDATA

Na noite severa, coberto de estrelas,
ainda cansado do campo, da lida,
nas páginas velhas, à luz de umas velas,
do mundo distante, vou lendo essa vida.

Daqui do meu rancho tão calmo e sereno,
conheço seus casos, prazeres e dores.
ensinam-me tudo do mundo pequeno
meus doces amigos, fiéis professores.

Eu saio em viagem por eras antigas
mergulho pasmado também no presente;
no triste passado sei bem das intrigas
e no nosso tempo, do homem carente;

Eu sei das conquistas, das guerras banais,
do Deus que protejo, dos deuses antigos,
de acordos formados, de quebra de paz;
ensinam-me tudo meus doces amigos.

Não quero na vida senão a palavra
contida nos livros, jornais e revistas,
a enxada pesada na terra, que lavra,
cantar com as rimas as minhas conquistas.

Meu campo florido, meus livros tão belos,
meu Deus adorado – meu doce destino! –
eis quanto consolo no meu peito tê-los!
com eles aprendo, com eles ensino.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Clube Ágora no festival de cultura de S. Mendes


João de Carvalho Fontes, Abegail Mendes e William Melo Soares

Poetas:
William Soares,Rogério Freitas, Márcio Mendes e Edilberto Vilanova

Banda Uns Pereira da Silva:
Teté, Dudu e Dodó

Poeta e compositor Weslei Rodriguês

Poeta João de Carvalho Fontes,
lançando o projeto poesia na camiseta

Poeta Márcio Mendes, Abegail Mendes e Edilberto Vilanova

Na Rota da Cultura

Certa feita, H. Dobal, poeta que engendrou a matriz inovadora da poesia piauiense, inferiu, ao refletir a respeito da função da poesia, que se a mesma servisse apenas para fazer amigos já justificaria sua função. Talvez seja esta a função de força maior da arte: fazer amigos. E partindo deste pressuposto a arte, pondo aqui de forma específica a arte poética, gera um amálgama de ações multifuncionais com o poder de descerrar significativas mudanças numa sociedade, já que o agente destas mudanças é o ser humano consciente do seu papel no espaço cultural que está inserido.

Em sua nova andança, o Clube Ágora aportou na cidade de Simplício de Mendes, no festival de cultura da cidade: o terceiro Simplificado, onde expôs a publicação da nova edição do jornal alternativo: Ágora, e a convite da organização do evento realizou um sarau lítero-muiscal, homenageando os poetas da terra: Weslei Rodriguês, Márcio Mendes (DODÓ) e Sebastião Mendes (Tião).

A realização do sarau em S. Mendes despontou como consequência da amizade de poetas que se encontraram nas veredas do mundo e se fizeram amigos, companheiros de arte e vida. No cenário cultural do festival fundiram-se diversas cabeças, de diferentes produções poéticas no prato fundo da poesia: coabitaram o mesmo espaço: o clássico, o experimental e o regional; poetas consagrados e insurgentes, estabelecendo um intercâmbio entre poetas de Simplício Mendes, Oeiras e Teresina.

A ação da organização do festival é louvável, visto que S. Mendes tem uma relação de intimidade com a arte literária. Toma-se como base a vasta produção do simpliciomendense Da Costa Andrade, que juntamente com Jorge Amado e outros subliteratos da década de 20, fundou, na Bahia, o movimento literário da Academia dos Rebeldes. Fala-se também de Maria Pangula, rainha do repente, um ícone da literatura de Cordel nacional. Isto sem citar os moderno-contemporâneos, com um regionalismo fantástico, de ótima qualidade literária.

O sarau Ágora aconteceu no espaço cultural Canto da Arte, coordenado pelos poetas, compositores e músicos integrantes da banda de rock Uns Pereira da Silva: Dudu e Teté, com o acompanhamento musical de Dudú e do jovem compositor Nailson, espaço que difunde a nova cena artística da cidade. Depois, os produtores do evento convidaram o Clube Ágora para fazer uma amostra poética no palco principal, em praça pública.
O festival de cultura de S. Mendes consolida o movimento de fortalecimento da cultura do Piauí, e cria uma ponte para apregoar e trocar experiências em todos os níveis culturais, tornando-se grandioso em virtude da simplicidade e da servilidade dos organizadores e artistas, como disse o músico piauiense Emerson Boy: o recado está dado, é simples, é simplificado.

Valorizando a poesia, o festival dita um novo rumo para outros festivais do estado que se restringem somente à música, pois a poesia também deve ser dignificada e difundida, sendo que está na arte poética o nascedouro de todas as artes: “a poesia é a mãe das artes e das manhas em geral.”